segunda-feira, 5 de junho de 2017

COLUNA | PENSANDO NUM FILME... por Bruno Mussil


“Eu, Daniel Blake”: aproximações com aspectos contemporâneos do capitalismo líquido e flexível

O belo filme “Eu, Daniel Blake” do cineasta Ken Loach trás à tona a história de Daniel Blake (interpretado por Dave Johns), um senhor de 60 anos que sofreu uma grave parada cardíaca enquanto trabalhava, que o impossibilitou de realizar atividades que demandam esforço, segundo seus médicos, com risco de novas lesões cardíacas caso voltasse a trabalhar em sua dura profissão de carpinteiro. 

Viúvo, sem filhos ou parentes próximos, Daniel Blake deve sua sobrevivência ao Estado. Vive um drama constante e diário pelos duros caminhos da burocracia estatal para conseguir receber o seguro desemprego ou a aposentadoria por invalidez que lhe garante uma pequena renda mensal que mal lhe auxilia no pagamento das contas domésticas. Assim, nesses árduos percalços burocráticos, Daniel é constrangido, humilhado, e vê-se perdido numa nova era (a era informatizada, online e tecnicista) – uma era que deixa paralisado no tempo àquele que não se rende ao novo mundo computadorizado – na qual conhece a jovem mãe solteira de duas crianças: Katie (Hayley Squires). 

A emblemática figura de Katie que luta
pela sobrevivência de sua família 
Katie é uma figura emblemática. Mãe solteira, ela também precisa do Estado para garantir a sobrevivência de sua família num pequeno e velho apartamento doado em Newcastle. Desempregada e longe de sua família londrina, Katie mergulha na angústia de não saber o que o futuro lhe reservará segundo após segundo, dia após dia. Como consequência, Katie chega a prostituir-se para conseguir dar um pouco de dignidade aos seus filhos que, assim como Daniel e Katie, veem seu caráter sendo corroído (para citar Richard Sennett) frente aos desafios da marginalização característica do capitalismo contemporâneo. 

Tal angústia, citada acima, é em parte explicada pela estrutura moderna do trabalho que, desde nosso processo de socialização à vida adulta, nos leva a negar o fracasso e a possibilidade de sua ocorrência, como afirma Sennett “o fracasso é o grande tabu moderno (...) a literatura popular está cheia de receitas de como vencer, mas em grande parte calada sobre como enfrentar o fracasso” (SENNETT, p.141, 2005). 

O filme aborda o desespero de ficar face-a-face
com o fracasso somado ao descaso do Estado
Katie e Daniel Blake, consequentemente, desesperam-se ao ficarem face-a-face com o fracasso somado ao descaso do Estado para com as pessoas em condição desoladora – que Karl Marx (2015), se assistisse o filme de Ken Loach, facilmente identificaria como parte do Lumpemproletariado (indivíduos que fazem parte de uma massa de pessoas arruinadas, flutuantes, e sem rumo). 

Daniel Blake, portanto, é um filme de nosso tempo de incertezas: nosso mundo líquido, no qual todas as instituições que considerávamos concretas assumem a fragilidade e flexibilidade líquidas anunciadas por Bauman (2007). Com o Welfare State não foi diferente. O Estado do bem-estar social, tão aclamado durante o século XX por apresentar-se como a saída do capitalismo às sérias crises cíclicas que assolaram o sistema econômico mundial, também é colocado em xeque. Sua liquidez se expressa na incerteza e fragilidade das personagens perante o Estado burocrático e as exigências flexíveis do atual mercado de trabalho. 

Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Zahar, 2007.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Boitempo Editorial, 2015.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: impactos pessoais no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Record, 2005.

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